Quando criança, eu morava no interior. Nessa época, íamos a festas sem o medo de hoje. Havia perigo, mas a confiança que as pessoas das pequenas cidades depositavam umas nas outras talvez fosse maior.
O fato é que, no período do carnaval, as crianças
participavam efetivamente do evento. Do mela-mela, por exemplo. Corríamos e
jogávamos farinha uns nos outros, até tarde da noite, ruas afora, bem longe dos
olhares de nossos pais. No meu bairro, eram bem poucos os meninos e meninas que
não tomavam parte disso. Porém havia sempre alguém, que assistia a tudo de uma
janela, sacada, ou fresta de uma porta, revelando um olhar indiscutivelmente
interessado.
Nisso eu me indagava: O que há como aquele menino? Tá na cara
que quer descer e brincar com a gente. Por que não desce de uma vez? Seria o
que chamam de timidez? Talvez o pai o tenha colocado de castigo. Quem sabe ainda
ele seja apenas um almofadinha, bom demais pra se sujar conosco... Qualquer que
fosse a razão, a imagem daquelas crianças que assistiam a tudo da sacada, sem
nunca descer para brincar na rua, permanece presente no meu dia-a-dia até hoje.
Com a diferença de que, hoje, eu projeto a imagem dessa criança em um dos
muitos perfis do leitor de quadrinhos... Ou “quase” leitor, como as palavras a
seguir pretendem esclarecer:
As opções de leitura nunca foram tantas, o que também vale
para os meios de disponibilização das histórias (com destaque para os meios
digitais). O público, aparentemente, expande-se, atraindo grupos, supostamente,
até então marginalizados. E a perspectiva
que prepondera é, em muitos aspectos, embora não em todos, de
prosperidade.
Porém há uma coisa, entre outras, que permanece precisamente
a mesma: A figura do leitor que assiste a tudo de perto, demonstrando claro
interesse ou propensão ao meio, sem investir, necessariamente, seu tempo e
demais recursos na leitura de uma HQ. Sempre houve essa figura. E por quê?
O que impede alguém claramente propenso a ler HQs deixar de
fazê-lo para conformar-se a,
simplesmente, vislumbrá-los? Seja através, de notícias da internet, comentários de amigos colecionadores (estes sim, em sua maioria, leitores contumazes) e outros canais de anúncios...
simplesmente, vislumbrá-los? Seja através, de notícias da internet, comentários de amigos colecionadores (estes sim, em sua maioria, leitores contumazes) e outros canais de anúncios...
Olha, poderíamos elucubrar sobre várias razões, porém hoje
proponho uma reflexão em torno de um único porquê: Singularidade.
Alguns leitores são, simplesmente, mais reservados.
Disponham de muitos ou poucos recursos de aquisição (seja tempo, dinheiro, ou
algum outro), o fato é que não têm inclinação para investir em uma história a
menos que tenham certeza de que se satisfarão plenamente com ela.
Você pode pensar: Ora, quem quer um leitor tão exigente
assim? Que esse cara fique à margem. Com a diversidade de autores, gêneros e
títulos a que temos acesso hoje com a internet, vale mesmo a pena tentar
refinar a compreensão de público-alvo de modo a abranger esse perfil tão
resistente de leitor ou “quase” leitor? Vale a pena buscar cativar alguém
tão... chato?
Possivelmente não. Para o mercado, importa que as margens de
lucro atinjam as metas, para os autores profissionais, importa que uma parcela
significativa do seu público-alvo, sinta-se contemplada e demonstre isso
através de seus investimentos no produto. Para o autor artista, basta
expressar-se. Ao mais vaidoso, um elogio. E, assim, o resistente quase leitor,
com sua questionável propensão a tornar-se um leitor efetivo, permanece à
margem da festa. Ele que fique lá... Eu mesmo penso assim.
Mas vou confessar uma coisa aqui pra vocês: Quando alguma
daquelas crianças, aparentemente mais esnobes, surpreendia, despontando na
calçada, aproximando-se e me pedindo um pouco de Maizena, era sempre mais
legal. Mesmo quando, assim que eu acabava de encher a mão da pessoa, ela
descarregava na minha cara.
Não sou leitor de HQs, confesso. Entretanto, o universo da Literatura me é tão atraente quanto as HQs são para você, amigo. Dessa forma, trago o seu artigo para o mundo com o qual me identifico. De fato acontece muito disso: um público encantado demais, interessado demais, porém sem ganas de experimentar participar desse campo tão profundo. A crítica é a que mais sofre. O estudo de Literatura sofre em conjunto. Mas o mercado - Ah!, o mercado -, este não demonstra qualquer preocupação com a qualidade do conteúdo. Mais vale uma história fechada, sem reflexão alguma e/ou análise textual que um genial Shakespeare, um crítico Dostoiévski ou um polêmico Vargas Llosa. É tão triste para mim falar disso que também penso se realmente vale a pena todo estudo que dedico. Se me dirijo à margem ou se dou continuidade a esse caminho trépido. Mas o pior, meu amigo, é que o caminho que tracei para minha é sem volta. Contudo, faço das suas palavras finais as minhas. É-me satisfatório quando um, pelo menos um, germina em si a sementinha sagrada que outrora joguei. A sementinha do mal.
ResponderExcluirAqui quem escreve é o Editor do Laboratório Espacial. Obrigado pelo comentário, João Vitor. Parece mesmo que a leitura (que estimula o senso crítico e desperta consciências) é mesmo vista pelo Estado constituído como uma semente do mal. Haja vista a forma como a Educação é gerida. Nesse cenário: "ler" é remar contra a maré. Estão de parabéns todos aqueles que leem e estudam e pensam e desenvolvem senso-crítico. Ler tornou-se um ato de heroísmo. Mas que bom que os que leem sabem que é um ato também libertador.
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