JJ MARREIRO: Cariello, 35 anos de carreira e múltiplas funções dentro dessa área: da produção à edição, design, roteiro, desenho, arte-final, aulas, mas vamos começar nosso papo com uma breve volta no tempo. Quais suas primeiras memórias relacionadas a quadrinhos?
OCTAVIO CARIELLO: Heróis da Marvel e DC, Cinco por Infinitus, Príncipe Valente, Disney, Turma da Mônica, Asterix e Tintin. Maroto, Marvel, DC, Disney e Maurício a gente encontrava nas bancas, Asterix e Tintin eram publicados em livros e Príncipe Valente em suplementos nos jornais. Toda sábado, meu irmão e eu ganhávamos a mesada e corríamos pra banca da esquina pra comprar o que desse e gastar horas lendo os gibis que seriam devidamente colecionados. Isso não parou nunca, apesar de termos parado de ganhar mesada uns anos depois (hehehe).
Antes de entrar nos quadrinhos o teatro, a literatura, a música (me corrija se eu estiver errado) e outras artes e disciplinas (não necessariamente artísticas) fizeram parte de sua formação, mas quando foi que você percebeu os quadrinhos poderiam ocupar espaço na sua vida profissional?
Os quadrinhos viraram trabalho desde muito cedo, ainda em Recife. Música, literatura e teatro aconteceram simultaneamente, mas ganharam corpo bem mais tarde. Em Recife, perdi um semestre da faculdade de arquitetura por causa do teatro. Quase fui fisgado pra sempre. Quando mudei pra São Paulo, continuei fazendo HQs e ilustrações pra revistas e jornais, mas abandonei o teatro de vez. Uma vez ou outra, fiz pontinhas em vídeos e ajudei na produção de espetáculos teatrais. Até compus, com uma amiga, Fátima Borges, uma das canções de um musical infantil! O primeiro trabalho com alguma projeção nacional surgiu com o Amigo da Onça e Sport Gang, depois foi o mercado estadunidense. Durante todo o tempo, continuei escrevendo e me dedicando ao violão sem pensar em fazer a coisa ficar séria. Mas ficou, daí dois romances, contos, poesias e algumas crônicas foram ganhando o mundo.
Você tem memória do que sentiu quando viu suas primeiras artes impressas?
Fiz algumas ilustrações e charges pra um panfletinho político da minha turma do curso de medicina da UFPE, mas as primeiras artes a sério foram publicadas num pequeno tabloide de Recife, o Rei da Notícia, editado por Clériston Andrade. Samuca, Gideon, Marcelo Farias, Claudia Spinillo e eu resolvemos criar um jornal de HQs com nossas próprias criações. Passamos a nos reunir na redação do jornal do irmão de Samuca, o Clériston, para cirarmos o Macacos Me Mordam (3M), uma homenagem ao Popeye e uma brincadeira sobre a indústria de produtos de papelaria. O projeto 3M gorou, mas Clériston viu nossos trabalhos e nos convidou a publicar no Rei da Notícia. Era fantástico aprontar artes que surgiriam impressas uma semana depois naqueles tabloides recheados de Quadrinhos, charges e cartuns. A sensação era boa, sim. Foi ali que me convenci ter nascido pra desenhar, escrever e fazer HQs.
Nos anos 80, no Brasil você já publicava ilustrações e quadrinhos em jornais e revistas de grande circulação, como surgiu a chance de desenhar para o mercado norte-americano? Houve um processo de adaptação para a forma e a linguagem dos quadrinhos gringos?
O pessoal do Art&Comics me contatou porque queriam levar material pra mostrar aos editores dos EUA. Não me interessei, mas eles insistiram; Helcio de Carvalho me ligou de Nova Iorque, diretamente da redação da Marvel, me pedindo mais material. Eles tinham levado algumas cópias de coisas publicadas por aqui, à minha revelia, e os editores ficaram interessados em ver mais amostras de meu trabalho. Achei que não ia dar em nada, mas mesmo assim, fui até o escritório deles, em São Paulo, e entreguei uns cinco originais nas mãos de Jotapê Martins (que se tornaria meu sócio na Fábrica de Quadrinhos muitos anos depois). Alguns meses depois chegou um roteiro pra ser ilustrado. Não deu tempo nem de pensar. Não houve fase de adaptação: eu tinha 25 páginas pra desenhar e arte-finalizar em 15 dias. Prova de fogo. Nem três dias tinham se passado e recebi o segundo roteiro com um prazo um pouquinho melhor: 20 dias. Recebi o primeiro pagamento, dois dias antes de terminar o segundo trabalho. Mesmo sem ter me interessado, no começo, entrei no American Comics Bizz de cabeça. E fiquei por mais de uma década...
A forma de trabalho, o método de produção de um artista que faz arte para o quadrinho americano mudou muito do final dos anos 80 (e começo dos anos 90) para os dias de hoje? Como era fazer quadrinhos como de Deathstroke e Wolverine naquela época?
Não havia Internet, nem computação gráfica, nem scanner pessoal. Referência, só em livros comprados ou emprestados, conseguidos em sebos ou livrarias especializadas. Já existia Xerox (e podia reduzir e ampliar!). Tudo era feito no papel e enviado via FedEx (Federal Express). As caixas iam de avião e chegavam no dia seguinte. Os originais às vezes voltavam. Hahahaha. Os pagamentos às vezes atrasavam. Hoje, você escaneia a arte ou produz direto no computador e envia por FTP ou WeTransfer. Chega usn segundos depois que você enviou. As discussões sobre mudanças ou correções acontece online e podem ser resolvidas em muitíssimo curtos prazos. Se o artista souber administrar o tempo, tem as noites e fins-de-semana livres.
O seu desenho tem o poder de puxar o leitor para dentro dos ambientes assim como seu trabalho com expressões corporais e faciais revelam muito sobre o interior dos personagens. Como escritor seu texto também possui grande poder de imersão, por meio das palavras ao invés de desenhos. Os quadrinhos te levaram a se tornar escritor e editor ou cada coisa surgiu de um interesse distinto?
Tivemos sorte de crescer numa casa abarrotada de Quadrinhos, livros, discos, esculturas, pinturas e fotografias. Meus pais eram entusiastas das Artes. A casa tinha um piano, violões e alguns instrumentos de percussão. Meus parentes eram muito musicais e os encontros acabavam em muita música e muito batuque. As artes nos rodeavam e faziam parte de nosso dia-a-dia. As estantes tinham livros ficcionais, documentários e enciclopédias que usávamos com frequência. Viajávamos muito e frequentávamos museus e galerias de arte. Acho que isso tudo ajudou muito pra nos dar uma base sólida pra nos manifestarmos artisticamente sem censura.
O livro 'Miragem' comemora seus 35 anos de carreira. Você mesmo editou, dói um pouco ter que deixar algumas coisas de lado por falta de espaço ou nesse trabalho de edição você abstrai normalmente esses fatores?
Hahaha! Eu mesmo editei e criei algumas obras especialmente pro álbum. Deixar coisas de fora é normal e cria a possibilidade de pensar em outros álbuns em que elas venham a caber. Tenho esperanças de nunca publicar um "As Obras Completas de Octavio Cariello". Tem muita coisa que fiz que eu quero que seja esquecida! Hehe. Difícil mesmo é escolher como apresentar tudo!
Como é o livro? Ele tem um processo histórico, explora (ou registra) um pouco a evolução do seu trabalho? Ou ele foi pensado como uma comemoração para os dias de hoje, deixando o lado histórico à parte?
A questão histórica existe, mas sem uma ordem cronológica: a maioria das obras está datada. O álbum é bilíngue (português/inglês) e poderá ser fruído por bem mais gente do que se fosse apenas em português. Tem alguns esboços, ilustrações usadas e inéditas, HQs, logos e fontes de letras. As páginas foram pensadas em duplas, os pares com texto editado com uma das fontes que eu criei. O PDF terá material adicional, com as famílias das fontes expostas com a maioria dos caracteres contidos, uma lista com os nomes de quem apoiar o projeto, alguns esboços adicionais e curiosidades, e uma seção com algumas traduções português-inglês-português; o que estiver em português terá uma versão em inglês e o que estiver em inglês, terá uma versão em português. O preço ficaria proibitivo se eu incluísse esse material todo na versão impressa.
Muita gente nos ajudou e têm ajudado, o Pietro Antognioni e eu, com Portais. Com Miragem, tenho tido o auxílio importante dos amigos e de uma empresa cuidando da assessoria de imprensa, a OutCorp!. Pretendo enviar os exemplares financiados com a ajuda de uma empresa e ainda distribuir os exemplares avulsos através de vários canais.
Dicas? Quem tiver planos de oferecer algo via financiamento coletivo precisa lembrar de se organizar muito bem e não economizar nos custos relacionados à qualidade do material a ser oferecido. É preciso também lembrar que nada existe sem muito esforço e trabalho. Fazer Arte sempre envolve uma boa dose de sacrifício.
Como foi que surgiu a ideia de fazer esse Artbook? E o que mais te estimulou durante o desenvolvimento e produção desta publicação?
Faz tempo que sou cobrado por algo parecido. É comum artistas trocarem ideias e apresentarem trabalhos em diferentes fases de desenvolvimento aos colegas, amigos e alunos. Em várias dessas seções de "olha-o-que-eu-fiz", fui instado a criar um artbook ou publicar meus cadernos de esboços. Ano passado (2015), comecei a desenvolver uma necessidade de fazer um balanço da carreira. A comichão virou coceira, e, sem qualquer prurido, uma vontade danada de ter um livro colecionando algumas coisas que produzi e das quais ainda consigo tirar prazer. Taí: Miragem. Álbum de 64 páginas todas coloridas, no formato 21x28 cm, recheado de coisas que tenho produzido nas últimas três e meia décadas. Acho que vai ficar bacana impresso!
Octavio Cariello, parabéns pelos 35 anos de carreira, obrigado pelo papo e pela inspiração que sua arte trás para todos nós que temos contato com ela.
MAIS:
Miragem no CATARSE
Cuco Maluco (Blog do Octávio Cariello)
Soulgeek: Octavio Cariello comemora 35 anos de carreira
Octavio Cariello no Deviantart
Para conhecer e apoiar o projeto Miragem no catarse basta seguir o link e clicar naquele botãozinho verdinho onde tem escrito "apoiar este projeto": Miragem no Catarse
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